(Na reunião geral dos Espíritas bordeleses, em 14/10/1861)
“Senhoras e senhores.
“Foi com felicidade que atendi ao vosso apelo (convite feito pelo Sr. Sabo), e o acolhimento simpático com que me recebeis é uma dessas satisfações morais que deixam no coração uma impressão profunda e inapagável. Se me sinto feliz com este acolhimento cordial, é que nele vejo uma homenagem à doutrina que professamos e aos bons Espíritos que no-la ensinam, muito mais do que a mim pessoalmente, que não passo de um instrumento nas mãos da Providência...”
“... Nos trabalhos feitos para atingir o objetivo que me propunha, sem dúvida fui ajudado pelos Espíritos, como eles próprios m’o disseram várias vezes, mas sem qualquer sinal exterior de mediunidade. Assim, não sou médium, no sentido vulgar da palavra, e hoje compreendo que, para mim, é uma felicidade que assim o seja. Por uma mediunidade efetiva, eu só teria escrito sob uma mesma influência; teria sido levado a não aceitar como verdade senão o que me tivesse sido dado e, talvez, erradamente. Ao passo que, na minha posição, convinha que tivesse uma liberdade absoluta de apreender o que é bom, onde quer que se encontre e de onde viesse. Assim foi possível fazer uma seleção dos diversos ensinamentos, sem prevenção e com inteira imparcialidade. Vi muito, estudei muito, observei muito, mas sempre com o olhar impassível e nada mais ambiciono do que ver a experiência que adquiri posta em proveito dos outros, aos quais tenho a felicidade de evitar os escolhos inseparáveis de todo noviciado (...)
“... No Espiritismo não há mistérios; tudo se faz à plena luz; e podemos revelá-lo sem receio altissonante (...)
“... Uns críticos dizem que a Doutrina Espírita é contrária à religião. Esta é a grande palavra com que tentam amedrontrar os tímidos e os que não a conhecem. Mas, - pergunto -, como uma doutrina que torna melhor os homens, que ensina a moral evangélica, que só prega a caridade, o esquecimento das ofensas, a submissão à vontade de Deus, seria contrária à religião? Seria um contra-senso. Afirmar semelhante coisa seria processar a própria religião. Eis porque digo que os que falam assim não conhecem a Doutrina (...) O Espiritismo é, sim, estranho a toda questão dogmática. Aos materialistas prova a existência da alma; aos que não crêem senão no nada, prova a vida eterna; aos que pensam que Deus não se ocupa das ações dos homens, prova as penas e recompensas futuras; destruindo o materialismo, destrói a maior chaga social. Eis o seu objetivo. Quanto às crenças especiais, delas não se ocupa o Espiritismo e deixa a cada um inteira liberdade de ação. O materialista é o maior inimigo da religião. Trazendo-o ao Espiritualismo, o Espiritismo o faz percorrer três quartas partes do caminho para voltar ao seio da Igreja. Cabe à Igreja fazer o resto. (...)
“...O mais belo lado do Espiritismo é o lado moral. É por suas conseqüências morais que triunfará, pois aí é que está a sua força (...)
“... se as opiniões estão divididas sobre alguns pontos da doutrina, podeis perguntar: - Como saber então de que lado está a verdade? É fácil responder. Para começar, tendes por peso o vosso julgamento, e, por medida, a lógica sã e inflexível. Depois tereis o assentimento da maioria; porque, acreditai, o número crescente ou decrescente dos partidários de uma idéia é que vai dar a medida do seu valor; se ela fosse falsa, não conquistaria mais adeptos do que a verdade. Deus não o permitiria...”
“... Um equívoco muito freqüente entre os novos adeptos é o de se julgarem mestres após alguns meses de estudo. O Espiritismo é uma Ciência imensa, como bem sabeis, cuja experiência não se adquire senão com o tempo...”
“... Senhores, em Bordéus encontrei elementos excelentes e um progresso muito maior do que eu esperava. Aqui encontrei um grande número de verdadeiros e sinceros espíritas...”
“... o Espírito de Erasto, que já conheceis, senhores, por suas notáveis dissertações, que já lestes, também quer trazer-vos o tributo de seus conselhos. Antes de minha partida de Paris, ele ditou, por seu médium habitual (Sr. d’Ambel), a comunicação seguinte, que vou ter a honra de vos ler.”
NOSSO COMENTÁRIO
A íntegra deste discurso de Allan Kardec se encontra na Revista Espírita, novembro/1861 (Ver Coleção EDICEL, págs. 256 a 364).
Kardec fez questão de deixar bem claro que quem, na verdade, tinha mesmo todo o direito àquelas homenagens que estava recebendo, eram os Espíritos que o assistiam, e não ele, que não passava de um aprendiz, um discípulo, um instrumento nas mãos de Deus.
Fez questão de frisar também que, ao realizar o trabalho, que os Espíritos Superiores lhe propuseram, ele não agiu como um médium no sentido vulgar do termo. E se regozijou por isso, porque assim pôde atuar com imparcialidade e sem prevenção.
Outras três coisas importantes ele fez questão de destacar bem: a) No Espiritismo não há mistérios como no Catolicismo e nas sociedades secretas; b) a Doutrina Espírita não é contrária à religião, mas é estranha a toda questão dogmática; c) O Espiritismo é uma ciência, que só se aprende com muito estudo. E, neste caso, nós, espíritas, temos que agir sempre como cientistas: lendo muito, estudando bastante, observando bem os fatos e as pessoas; levantando questões ou hipóteses; pesquisando as causas e as fontes dos fenômenos; usando sempre da lógica, da razão, do raciocínio, do bom-senso.
Allan Kardec disse que, em Bordéus, encontrou “um grande número de verdadeiros e sinceros espíritas”, mas não cita nenhum, muito menos J. B. Roustaing, que já conhecia por correspondência. Este, em cartas que lhe dirigiu, sempre o tratou com cortesia, demonstrando, inclusive, desejo enorme de o conhecer pessoalmente e apertar-lhe a mão de amigo. Todavia o ilustre advogado bordelense, não foi dar-lhe as boas vindas, quando de sua chegada a Bordéus, nem compareceu à reunião geral do dia 14, em que foi inaugurada a Sociedade Bordelesa de Estudos Espíritas. E ainda andam por aí dizendo que Roustaing foi auxiliar de Kardec e fez parte da gloriosa Falange do Espirito de Verdade!.
Finalmente, temos que louvar o fato de Kardec, em seu discurso de agradecimento, ter citado, no final, o nome de Erasto, Discípulo de São Paulo, (grifo nosso), cuja mensagem, dirigida aos espíritas bordelenses, fez questão de ler, fechando assim com chave de ouro o seu belo discurso.
Vejamos então a seguir o teor dessa Epístola.
PRIMEIRA EPÍSTOLA DE ERASTO AOS ESPÍRITAS DE BORDÉUS.
“Que a paz do Senhor esteja convosco, meus bons amigos...
“... aproveito esta ocasião para vos dizer quanto seria funesto para o desenvolvimento do Espiritismo, e que escândalo causaria a notícia de uma cisão (no movimento espírita). Mas, eu não ignoro, como também não deveis ignorar, que tudo farão para semear a divisão entre vós; que vos armarão ciladas; que, em vosso caminho semearão emboscadas de toda sorte; que vos colocarão uns contra os outros, a fim de fomentar a divisão e levar a uma ruptura, por todos os títulos lamentável...
“Meus amigos, vossos excelentes Guias já vos disseram: - ‘Tereis que lutar não só contra os orgulhosos, os egoístas, os materialistas (...) mas ainda e sobretudo contra a turba de espíritos enganadores, que (...) em breve virão assaltar-vos: uns com dissertações sabiamente combinadas, nas quais insinuarão a heresia ou algum princípio dissolvente; outros, com comunicações abertamente hostis aos ensinos dados pelos verdadeiros missionários do Espírito de Verdade. Ah!, crede-me, não temais desmascarar os embusteiros, que, novos Tartufos, se introduzirão entre vós, sob a máscara da religião (grifo nosso); sede igualmente impiedosos para com os lobos devoradores que se escondem sob as peles de cordeiros...
“Tive que vos falar assim, meus irmãos, porque era necessário vos premunir contra um perigo que era meu dever assinalar; venho cumpri-lo. Sim, venho cumprir este dever de vos alertar contra esse perigo que vos ameaça.(grifos nossos). Agora estou satisfeito: posso encarar o futuro sem inquietude, porque estou convencido de que minhas palavras serão proveitosas a todos em geral e a cada um em particular (...)
“... Em nome do Espirito de Verdade, que vos ama, eu vos abençôo, Espíritas de Bordéus...” Erasto.
(Trechos da Primeira Epístola de Erasto aos espíritas de Bordéus, lida por Kardec na reunião geral do dia 14 de outubro de 1861).
NOSSO COMENTÁRIO.
O grande pesquisador espírita, Sr. Jorge Damas Martins, por ser roustainguista, ao falar, em sua “História de Roustaing” sobre as homenagens que os espíritas de Bordéus prestaram a Allan Kardec, no dia 14 de outubro de 1861, fez questão de citar o nome do Dr. Bouché de Vitray. Este é o mesmo que, na ocasião, ao falar, saudando o ilustre homenageado, aproveitou a oportunidade para lembrar aos presentes que foi graças a Roustaing que veio a se iniciar no Espiritismo ou Doutrina Espirita.
Mas, da Epístola de Erasto, que Kardec leu na íntegra, Jorge Damas fez questão de citar apenas um pequenino trecho: aquele em que ele fez elogios aos médiuns que existem em Bordéus, cidade que considerou, “ a mais bem, dotada de grandes e excelentes médiuns”, tendo, inclusive, citado, como exemplo, os nomes da senhora e senhorita Cazemajoux, sem fazer qualquer referência à Sra. Émillie Collignon.
Em relação ao banquete, que, no dia 15 de outubro, foi oferecido a Kardec, “ilustre convidado” dos bordeleses, esse historiador faz menção ao discurso e ao brinde que Kardec fez aos espíritas de Bordéus. É que, nesse discurso, Kardec aproveita para ler uma mensagem ditada pelo Espírito de Verdade. E, em certo trecho, este luminoso Espírito faz elogios à cidade de Bordéus, que “é amada pelos Espíritos” porque eles vêm ali belos exemplos de caridade e solidariedade.
Realmente, ali, em Bordéus, o movimento espírita estava em pleno desenvolvimento.
Mas, o Espírito de Verdade, nessa pequena mensagem, não faz nenhuma referência a Roustaing, nem à Sra. Collignon. É que, até aquela data, só havia os três primeiros livros da Codificação. E o próprio Sr. Roustaing, em carta a Kardec, declarou que se tornou espírita depois que leu “O Livro dos Médiuns” e “O Livro dos Espíritos”. Só havia, portanto, o Espiritismo, isto é, o verdadeiro Espiritismo.
Muito bem! Vejamos então os fatos contados pelo ilustre historiador citado:
“DEZEMBRO. Roustaing mediunicamente é avisado para ver um quadro mediúnico que estava sendo exposto na casa de Émillie Collignon. Ele vai e ali é apresentado a esta Sra. pois ainda não se conheciam. Oito dias depois, Roustaing retorna lá, para agradecer-lhe o acolhimento que tivera. E conversam muito, mas só sobre generalidades (assuntos gerais).
“Quando, porém, Roustaing se preparava para sair, a médium caiu em transe (“impressão e agitação fluídica” nas mãos) e recebeu uma longa mensagem assinada pelos Evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João, assistidos pelos Apóstolos. Todos eles lhe falam sobre o início de “Os Quatro Evangelhos”, que é, diz Jorge Damas Martins, a maior obra mediúnica de todos os tempos.
E o Sr. Jorge Damas Martins, todo eufórico, acrescenta: “ – É, nesta primeira comunicação recebida por Collignon, que encontramos a famosa expressão ‘revelação da Revelação’ (obra citada, pág. 25).
Deve-se, porém ter sempre em mente que esse encontro de Roustaing com a Sra. Collignon, na residência dela, foi em princípios de dezembro de 1861.
Roustaing ainda não havia tomado conhecimento das mensagens psicografadas por ela. O que ele conhecia somente eram “O Livro dos Espíritos” e “O Livro dos Médiuns” de Allan Kardec.
No ano seguinte, (1862), por duas vezes o Espírito de Erasto se manifestou na Sociedade Parisiense de Estudos Espiritas. Em sua primeira comunicação, ele ordena: “Desconfiai dos falsos profetas” e , para que suas palavras tivessem força e fossem convincentes, esclarece, na primeira, quais são os “Caracteres do verdadeiro profeta”; na segunda, quais são “Os falsos profetas da erraticidade”.
Essas duas comunicações se encontram em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, cap. XXI, ns. 9 e 10. E note-se que, quando foram psicografadas pelo Sr. d’Ambel, Roustaing já estava com as mensagens recebidas pela Sra. Collignon em mãos, lendo-as e se deliciando com tudo que transmitiam os Espíritos que as haviam ditado. Os resultados do seu trabalho de compilação e coordenação só apareceram, à revelia de Allan Kardec, em 1866 com a publicação do livro que leva o seu nome: “Os Quatro Evangelhos”.
Caros leitores, esta é uma obra que todos os espíritas têm que conhecer, porque o próprio Kardec, com o bom-senso que o caracterizava, leu, encontrou alguns pontos positivos e, agindo com imparcialidade, como era do seu feitio, chegou mesmo a aconselhar sua leitura.
E depois, como ele próprio havia dito, se quisermos conhecer, completamente, uma ciência, - e o Espiritismo é uma ciência, como ele próprio o definiu – devemos ler, necessariamente, tudo o que foi escrito a seu respeito, não se limitando a um único autor. “Devemos, inclusive, ler os prós e os contras, as críticas e as apologias, a fim de podermos julgar por comparação”. (O Livro dos Médiuns, cap. III, nº 35, parte final).
Vamos, pois, ler e estudar “Os Quatro Evangelhos” de J. B. Roustaing, e também o livro “A Gênese” de Allan Kardec. E, ao mesmo tempo, vamos fazer uma comparação minuciosa entre essas duas obras, nunca esquecendo que foi o Prof. Rivail/Allan Kardec, o único e verdadeiro Missionário da Terceira Revelação da Lei de Deus, cujo Guia e Protetor Espiritual foi o luminoso Espírito de Verdade.