Profa. Dora Incontri
“Eu poderia escrever muitas páginas com todos os pontos de total dissemelhança entre a personalidade de Kardec e de Chico. Em primeiro lugar, estabeleçamos alguns parênteses. O que sabemos de mais sólido sobre outras existências de Kardec (...) são as duas que ele aceitava: a de druida e a de Jan Huss (...) Mas, nos três momentos conhecidos, dá para notar a coerência de uma personalidade corajosa, viril, segura, austera, de mente límpida e clara (o estilo de Jan Huss é o mesmo de Kardec, simples e cristalino, preciso e firme) e sempre dedicada à educação. Os druidas eram sacerdotes-educadores, Huss foi reitor da Universidade de Praga e Rivail/Kardec foi educador durante mais de trinta anos na França...
“Huss desafiou a Igreja Católica e morreu cantando na fogueira, em 1415, depois de ter escrito cartas belíssimas da prisão, mostrando sua firmeza e serenidade. Kardec desafiou a Ciência oficial, a religião tradicional e todo sistema acadêmico estabelecido, fundando um novo paradigma para o conhecimento humano, numa síntese genial. Quando estudamos sua vida e sua personalidade, vemo-lo mover-se com absoluta segurança de si, com total equilíbrio, desde os primeiros textos pedagógicos, aos 24 anos, até a redação da última Revista Espírita, que deixou pronta antes de morrer. Os próprios Espíritos Superiores o chamam de mestre. O Espírito de Verdade o trata de forma amorosa, aconselhando-o sempre com respeito ao seu livre-arbítrio, à sua capacidade intelectual e à sua estatura moral.
“Kardec se ocultou tanto atrás da obra, pela sua extrema modéstia e reserva (que não era a humildade mística de Chico, que se autodenominava verme, besta,
pulga, cisco...), que os próprios adeptos do espiritismo não sabem aquilatar-lhe a grandeza.
“Agora, analisemos a pessoa Chico Xavier, que conheci desde a minha primeira infância. Trata-se de uma personalidade doce, amorosa, bastante feminina, emocional, mística, com forte vocação literária e poética (ao contrário de Kardec), mas uma personalidade fraca. (grifo nosso). Basta ver sua relação com Emmanuel. Seu guia espiritual, aliás forte e altivo, sempre manteve com Chico uma postura disciplinar, rígida, admoestando-o se o via fraquejar.
“Vêem-se diversas situações desse tipo, na leitura do livro ‘As Vidas de Chico Xavier” de Marcel Souto Maior (...), entre tantas que mais parecem relatos de vida de santo da Idade Média, pela linguagem melada, pela louvação exagerada e pelo cunho miraculoso. Basta lembrar de Chico, gritando em pânico, porque o avião, em que estava ameaçava cair e Emmanuel, diante dele, dizendo: ‘Dá testemunho da tua fé, da tua confiança na imortalidade! (...) morra com educação!”.
Este é o Espírito que enfrentou a fogueira, cantando, sem retirar uma palavra do que dissera ?! A resposta o próprio Emmanuel já deu ao Chico certa vez: ‘ Meu filho, você é planta muito fraca para suportar a força das ventanias. Tem ainda muito que lutar para um dia merecer e morrer pelo Cristo.
“Noutras ocasiões, os próprios encarnados tiveram de adverti-lo severamente, como no caso da adulteração de ‘O Evangelho s/o Espiritismo’, na década de 1970 ...
“Chico é, pois, um Espirito bom, em processo de resgate e regeneração, ainda enfrentando conflitos internos e desequilíbrios e tendo necessidade do freio curto de Emmanuel para se manter na linha das próprias obrigações. Nunca, - diga-se -, ele mesmo se viu ou se assumiu de outra forma. Kardec, ao contrário, já 600 anos atrás não revela conflito, não se mostra abalado por nada. Seu companheiro de Reforma, Jerônimo de Praga, chegou a abjurar, com medo da fogueira. Arrependeu-se depois e enfrentou a morte com galhardia. Mas, em Jan Huss não há hesitação ou fraqueza, apenas a altivez do Espírito que já atingiu a estatura de um missionário.
“Da mesma forma Kardec. Nem sabemos o quanto ele sofreu e foi perseguido, pois não se queixava. Apenas nas entrelinhas de Obras Póstumas, quando se refere, por exemplo, à Sociedade Espírita de Paris, como um ninho de intrigas, é que, de longe, vislumbramos o que deve ter passado. Mas nunca o vemos abatido ou choroso.
“Quanto à linguagem de Chico é também oposta à de Kardec. Trata-se de uma linguagem literária, ornamentada, própria do médium - pois sabemos que o médium influencia as comunicações. (...) Se Kardec tivesse escrito, por exemplo, “Mecanismos da Mediunidade”, seria certamente numa linguagem bem mais objetiva, menos literária e mais digerível.
“Vou mais longe. Sem ofensa ou menosprezo pelo grande Espírito de Emmanuel, ele próprio fica bem abaixo da estatura espiritual de Kardec. Basta lembrar que, enquanto Jan Huss estava morrendo na fogueira por criticar os abusos da Igreja e duzentos anos depois, seu discípulo Comenius estava inaugurando a Pedagogia moderna, em oposição à educação jesuítica, Emmanuel - leia-se padre Manuel da Nóbrega – estava ainda a pleno serviço da Igreja, imerso no projeto de catequese jesuítica dos índios. Tanto ele quanto Anchieta talvez tivessem suas críticas ao movimento de que participavam e sem dúvida deram contribuição meritória ao início da educação brasileira. Mas estavam ainda com as correntes mais conservadoras da história, ao passo que Huss (depois Kardec) inaugurara já novas relações entre Deus e o homem, sendo retomado na Reforma de Lutero, e aprofundado na proposta educacional de Comenius, que estava a anos luz adianta da proposta jesuítica.
“Com isso, eu não estou diminuindo a importância nem da personalidade histórica de Manuel da Nóbrega, nem do Espírito Emmanuel, entidade que respeito e amo muito, nem menosprezando a obra que fez por intermédio do Chico. Mas é preciso reconhecer a superioridade de Kardec, coisa que tanto Emmanuel, quanto Chico, sempre reconheceram. Certo dia disse Emmanuel ao Chico - e esta é uma passagem conhecida de todos - que se ele, Emmanuel, deixasse Jesus ou Kardec, o pupilo deveria deixá-lo também e ficar só com Allan Kardec (o único e verdadeiro Missionário da Terceira Revelação da lei divina).
“Ora, se o próprio guia de Chico, - Emmanuel - se submetia a Kardec, como é que este, - Kardec - poderia ser seu tutelado ?!
A Profa. Dora Incontri, em seu livro “Para entender Allan Kardec”, aponta, no cap. 8, alguns “desvios”. Um deles se refere à “idolatria dos médiuns que se destacam dentro do movimento espírita”. Então ela diz: “ – Estamos de novo considerando a mediunidade um privilégio, uma garantia de superioridade moral, quase iniciática...”, e linhas adiante acrescenta: “Nenhum médium brasileiro alcançou a clareza, a concisão, a simplicidade de linguagem e a lucidez das mensagens que Allan Kardec incorporou na doutrina espírita” (p. 8).
Neste caso, nem mesmo o Chico, com todo esse cabedal de grandeza física, mental, intelectual e espiritual com que querem muitos o distinguir dos demais médiuns brasileiros do século passado.